A Cobrança pelo uso dos Recursos Hídricos como instrumento estadual de Política Macroeconômica*
A Cobrança pelo uso dos Recursos Hídricos como instrumento estadual de Política Macroeconômica*
O presente ensaio representa o início de uma investigação sobre um dos mais novos instrumentos estatais de intervenção ambiental e econômica: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, conforme instituído pela Lei Federal n. 9.433/1994.
Resumo: Ensaio inicial da investigação sobre a cobrança de uso dos recursos hídricos como instrumento de política macroeconômica estadual, em especial do Estado de Mato Grosso. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um instrumento econômico de reduções de externalidades negativas, adotando o princípio do usuário-pagador que tem como pressuposto o valor econômico da água e a negociação entre o poder público e a coletividade sobre sua fruição. Observando o aspecto econômico da água, a sua regulação intervirá no mercado, logo o Estado pode utilizar essa cobrança como meio de execução políticas econômicas. Atenta-se para a perda, nos últimos anos, pelos Estados-membros, da maioria dos seus instrumentos tradicionais de intervenção econômica. Logo, em uma interpretação sistêmica, há condições jurídicas, políticas e econômicas, para que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos seja uma ferramenta de atuação estatal na economia, suscitando mais pesquisas e estudos sobre sua natureza e efeitos.
Palavras-Chaves: Recursos hídricos; cobrança; externalidades; política macroeconômica; economia; direito econômico; direito ambiental.
Sumário: Introdução; I - Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades; II - Fases Históricas do Combate Estatal para Diminuição das Externalidades Causadas pelo Uso dos Recursos Hídricos; III - Da Legislação Instituidora da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos e Sua Interpretação pelos Tribunais; IV - Classificação Econômica da Cobrança sobre o Uso dos Recursos Hídricos como Instrumento de Intervenção Econômica; V - Perda da Autonomia dos Estados Membros para Definirem suas Políticas Macroeconômicas; Aspectos Finais: Primeiras Hipóteses e Problemas a Serem Respondidos; Referências Bibliográficas.
Introdução
O presente ensaio representa o início de uma investigação sobre um dos mais novos instrumentos estatais de intervenção ambiental e econômica: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, conforme instituído pela Lei Federal n. 9.433/1994. Além da possibilidade sua implementação e utilização pelo Estado do Mato Grosso, conforme dispõe a Lei Estadual n. 6.945/1995. Inclui-se nesta investigação a análise de tal exação como um instrumento de efetivação de políticas macroeconômicas a serviço dos Estados-membros brasileiros.
Basicamente, o tema a ser investigado pode ser resumido da seguinte forma: A cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento estadual de política macroeconômica. O objeto desse trabalho é a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, conforme instituído pela Lei Federal n. 9.433/1994 e a Lei Estadual n. 6.945/1995, prevendo a sua interpretação pelos tribunais. Já o objetivo é iniciar a análise do papel da cobrança pelo uso dos recursos hídricos na política macroeconômica, em especial do Estado de Mato Grosso para os próximos quatro anos, (execução do Plano Plurianual de 2004-2007, aprovado pela Assembléia Legislativa).
Para detalhar no que consiste a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sua relação com a política econômica estadual, é necessária a introdução em alguns conceitos que, numa interpretação sistêmica, demonstrarão a própria relevância do tema. Assim, primeiramente, (1) será explanado sobre o relacionamento de quatro elementos: Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades.
Depois da planificação relacional, (2) serão relatadas as fases históricas do intervencionismo estatal para a diminuição das externalidades causadas pelo uso dos recursos hídricos. Segue-se a (3) interpretação dos textos legais sobre o que consiste a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e os requisitos básicos para sua implantação, bem como (4) a sua classificação econômica como instrumento de intervenção.
E por último, neste ensaio, (5) teremos uma breve reflexão sobre a perda da autonomia dos Estados-Membros para definirem e executarem suas políticas macroeconômicas, e o surgimento de um novo instrumento para a atenuação de tal perda.
I - Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades.
A escolha dos fatores supra indicados decorre justamente por ser a água objeto da relação jurídico-econômica resultante de sua manipulação; a escassez é elemento gerador de conflitos que representa a impossibilidade de todos se servirem ilimitadamente de tal bem; o valor econômico é o resultado do segundo, para possibilitar a distribuição do bem escasso; e, as externalidades são justamente as conseqüências emanadas da manipulação, conforme a relação jurídico-econômica do bem em questão.
Água. A água como conhecemos e necessitamos encontra-se a cada dia mais escassa. Não importando a corrente teoria a ser seguida, é certo que todo aquele bem que é útil e escasso têm valor econômico, e, quanto maior a sua utilidade e escassez, maior será o seu valor.1 Voltando, a utilidade da água não necessita ser comentada, ainda mais das águas doces. O segundo elemento para a valoração econômica da água (escassez), principalmente no Centro-Oeste brasileiro, é falseado pela impressão de abundância e regularidade de abastecimento, estimulando a sua qualificação como a de um bem inferior, sem que seu valor real seja percebido pelos usuários locais.
Entretanto, a realidade presente e futura tem nos mostrado o inverso de tal impressão. Sob os auspícios do uso desordenado da água, sob a crença de eterna renovação, a verdade tem-se mostrado perversa. A taxa de renovação (renovação marginal2) dos corpos d’água, para as suas mais diversas funções (abastecimento urbano e rural, nutrição humana e animal, esgotamento e outros), apresenta-se muito inferior a taxa de seu uso (uso marginal). Logo a sua qualidade para os usos mais genéricos tem caído a níveis nunca vistos. A água com qualidade, além de útil, torna-se escassa. A tenebrosidade dessa realidade é tanta que, em janeiro de 1993, na Conferência de Dublin, a água passou a ser considerada um recurso natural finito e vulnerável
Introduzido o problema geral da água, cumpre-nos esclarecer qual o aspecto e classificação da água de que se está tratando, para evitar-se generalismos. Como já colocado anteriormente, por causa dos usos indevidos da água, a mesma perde várias de suas funções ou utilidades, logo podemos definir espécies de água. Para o nosso caso, identificaremos uma espécie de água como recursos hídricos, relevando o aspecto econômico dos volumes de água. Ou seja, quando a água entra no processo econômico-produtivo como elemento de troca, fator de produção ou, inclusive, como produto, vislumbramos a sua face econômica.
Considerando que, com a degradação e a escassez das fontes (manguezais, rios, olhos d’água, lençóis freáticos, e outros), do volume de recursos hídricos, e com sua extrema utilidade, temos um cenário de alta valorização econômica dos mesmos. Entretanto, por incapacidade de apropriação (no sentido de propriedade e domínio) dos recursos hídricos presentes na natureza, eles são considerados livres, mesmo que apresentando alta valoração econômica. Em face de tal realidade, o Estado, visando regular tal situação desde a metade do século XIX, tem criado progressivamente instrumentos para fazer com que os recursos hídricos tenham reconhecido o seu valor econômico. O motivo destes esforços tem o objetivo de fazer os usuários desse bem interiorizem os custos dos prejuízos causados a terceiros, mesmo que não expressamente percebidos individualmente. Em suma, essa interferência causada a terceiros por certa atividade e que não é normalmente contabilizada é conhecida de externalidades.
As externalidades podem ser positivas ou negativas. As primeiras são aquelas benéficas, como o exemplo de uma indústria que irá ter 100 empregos diretos em uma comunidade, onde as externalidades positivas serão os empregos indiretos e a maior circulação de valores na comunidade. As externalidades negativas traduzem-se nas interferências prejudiciais, em que, no mesmo exemplo, podemos indicar a poluição da indústria (resíduos jogados no ar e no córrego que abastece a cidade), ocasionando maior ocupação hospitalar por problemas respiratórios e custos com tratamento da água. Isso é, as externalidades são os efeitos negativos ou positivos não contabilizados monetariamente pelos agentes econômicos. [NUSDEO, 1997, p. 176-178]
II - Fases Históricas da Intervenção Estatal para Diminuição das Externalidades Negativas
O Estado, por meio de instrumentos jurídicos e econômicos, busca diminuir as externalidades negativas, redirecionando os efeitos para os agentes causadores. Tal fenômeno é conhecido como o processo de internalizar as externalidades. Consideram-se três fases históricas [CANEPA, 2000] por quais passou a interferência estatal na busca de reduzir as externalidades causadas pelo uso dos recursos hídricos.
Primeira fase.
Anterior a 2ª Guerra Mundial. A forma preponderante de atuação do Estado foi a intervenção específica nas questões dos recursos hídricos, que por sinal foram as primeiras questões ambientais normatizadas. Tal intervenção era efetuada por meio das disputas nos tribunais, onde as vítimas diretas das externalidades buscavam a o ressarcimento de seus danos. Observe-se que a legislação de tal época referente ao meio ambiente é de caráter fortemente privatista e individualista, muito arraigada aos princípios dos direitos de primeira geração (direitos individuais e políticos públicos).
Segunda fase.
Ao verificar a incapacidade do simples sistema individualizado de ajuste ambiental, o Estado exerceu um controle mais efetivo do meio ambiente, que recebeu o nome de Política de Mandato-e-Controle, assumindo características bem definidas: i) a imposição, pela autoridade ambiental de padrões de emissão incidentes sobre a produção final (ou sobre o nível de utilização de um insumo básico) do agente poluidor; ii) a determinação da melhor tecnologia disponível para abatimento da poluição e cumprimento do padrão de emissão. Está clara a política de intervencionismo direto do Estado, muito característico do projeto do Well Fare State, ou implementação dos direitos sociais de segunda geração.
Terceira fase.
Hoje em estágio de implementação, adotando um sistema misto de intervenção e participação dos particulares. Em que a imposição nem sempre é acompanhada de uma punição, busca-se por meios econômicos a implementação de uma Política Ambiental cujo conteúdo permita a inserção da restrição a ser imposta. Sem qualquer restrição absoluta à atividade econômica, mas sim uma negociação, influenciando diretamente os custos de produção. Ou também, a adoção de padrões de qualidade em complementação aos, antes adotados, padrões de emissão, bem como a utilização de outros instrumentos econômicos (exemplo tributos, subvenções e cessões de direitos), procuram induzir condutas menos agressivas ao meio ambiente.
III - Da Legislação Instituidora da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos e Sua Interpretação pelos Tribunais
O foco de análise do estudo estará direcionado para o posto na última fase histórica exposta acima, pois foi nela que o Estado imbuído de novos conceitos econômico-jurídicos instituiu a Política Nacional e Estadual de Recursos Hídricos, instrumentalizando a gestão dos aqüíferos, criando a figura da outorga do direito de uso e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Assim, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos está definida nos seguintes artigos da Lei Federal 9.344/1994:
DA COBRANÇA DO USO DE RECURSOS HÍDRICOS
Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:
I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;
II - incentivar a racionalização do uso da água;
III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.
Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos termos do art. 12 desta Lei. Parágrafo único. (VETADO)
Art. 21. Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:
I - nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;
II - nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente.
Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados:
I - no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;